Sobre a Road Trip
Primeiro de tudo nossa viagem não tinha um nome definido, e acabamos escolhendo "busca do sol" porque foi muito trabalhoso vê-lo na suas horas mais gloriosas; o nascer e o poer.
Percorremos 1500 km desde Campo Mourão até Porto Belo, fazendo uma volta por Vacaria no Rio Grande do Sul e descendo a remota Serra do Faxinalzinho entre Praia Grande em Santa Catarina e Cambará do Sul na serra gaúcha.
Percorremos estradas incríveis e tivemos horas mágicas em meio a natureza, mas também momentos reflexivos e angustiantes perante as circunstâncias desagradáveis da vida.
Contaremos a viagem em cinco diários que reúnem 14 dias e dezenas de locais.
Dia Primeiro - Dentro da Pipa de Vinho
Começamos o dia logo que o sol nasceu, às 05:10 da manhã. Nossa primeira estrada foi a velha conhecida BR 487 que depois vira PR 466 e cruza a zona de transição entre o primeiro e segundo planalto paranaense. Seria uma estrada perfeita se não fossem algumas dezenas de quilômetros imprestáveis entre os municípios de Nova Tebas e Pitanga ambos no Paraná. No mais é uma estrada agradável com belas colinas e cumes pontudos no horizonte.
Depois de Guarapuava pegamos a PR 170, uma rodovia bem conservada que corre na borda do terceiro planalto em meio a mata de araucárias pintando um cenário incrível. Já se iam 4 h de viagem quando avistamos a Represa de Foz do Areia, um imenso lago represado no distrito de Faxinal do Céu, em Pinhão, Paraná. O lago que geralmente tem tom azul-turquesa dessa vez estava de um verde intenso, resultado da estiagem que acaba aglomerando a matéria orgânica e favorecendo o acúmulo de algas.
Após da represa a PR 170 no leva ao município de General Carneiro com sua bela Igreja Ucraniana de São Miguel Arcanjo, depois de percorrer sinuosa estrada pelo município de Bituruna, a capital do vinho, ao menos é o que indica a placa na sua entrada.
Chegamos em General Carneiro, a última cidade de Paraná, já pela BR 153, e paramos para fazer um lanche que trouxemos de casa. Logo depois da soneca parei no posto da rodovia para abastecer, e o frentista ligou a bomba e saiu. A tal bomba não tinha trava e acabou extravasando mais de 15 l de gasolina, pior, foi que a tinta do entorno do tanque soltou bolhas (foto acima). Na hora fiquei irritado e além de exigir que perda fosse descontada, imagina que a mulher do caixa quis colocar que eu tinha de pagar o combustível jogado fora. Depois de mandar chamar a polícia ela descontou 16 litros. Já quanto a pintura, era um sábado a tarde, num município muito pequeno e não havia latoeiro atendendo. Depois de pensar um pouco, segui viagem pois não adiantaria frustrar-me, depois de voltar vou tentar cobrar, mas já não tenho muita esperança. Para piorar a Gorila começou a apresentar enxaqueca. O sensor de óleo do motor não acusava mais pressão do óleo. Procuramos, e procuramos e não achamos nenhuma mecânica em funcionamento. Por fim falei com o mecânico que cuida da bichinha e resolvemos tocar viagem, acreditando que o problema era o sensor, afinal já tinha rodado 40 km com o alarme e o motor sobrevivera.
Depois desse rolo todo já eram 14:30 quando seguimos pela BR 153 até Água Doce em Santa Catarina, onde pegamos uma rodovia municipal em péssimas condições até o Caçador. A paisagem dos campos de cima, transição entre o segundo e o terceiro planalto são a recompensa de uma estrada tão ruim. Já se aproximando de Caçador a imponência da Floresta Nacional de Caçador causa euforia, é a maior reserva de mata de araucárias do Brasil.
Em Caçador passamos para a SC350 até Santa Cecília, a paisagem se torna confusa de colinas, vales e áreas desmatadas mescladas a outras áreas de reflorestamento. Ao menos a estrada é boa. Já em Santa Cecília pegamos a BR116, agora uma rodovia pedagiada e muito boa de se andar, porém a paisagem até Lages é de reflorestamento de pinus ou de desmatamento.
Contornamos Lages e seguimos em direção à Vacaria. Cruzamos a fronteira de estados debaixo de chuva. O vale onde corre o Rio Pelotas estava tomado de nuvens e a noite já caía.
Assim que deixa de ser pedagiada a BR116 vira um caos, não bastassem os buracos os primeiros quilômetros são de uma sinuosidade impressionante. A rua apertada em alguns momentos parece que não vai comportar dois veículos em sentido contrário. Daqui em diante não vimos mais nada, mas nós já conhecemos esse trecho de outra viagem e sabemos ser um espetáculo de campos e pomares.
Chegamos em Vacaria às 19:30 e na busca por um hotel acabamos descobrindo a maravilhosa Pousada das Pipas, o que me conquistou foi as fotos do café da manhã colonial com as geleias e doce de leite caseiros. Mas ao chegar no lugar fomos surpreendidos com quartos construídos dentro de pipas de maturação de vinho reaproveitadas. Literalmente um espetáculo.
Dia Segundo - Cânion Itaimbezinho Parque Nacional de Aparados da Serra
Nosso dia começou em grande estilo. Bebemos um maravilhoso café colonial e colhemos algumas amoras do fundo da pousada. Depois de escolher um vinho local pegamos a BR285 sentido Jaquirana/Tainhas. Essa rodovia percorre os campos de cima da serra gaúcha. Boa parte dela corta grandes extensões de pomares de maça e ameixa, outros trechos são campos infinitos, cortados por pequenos capões de araucárias e triscados por linhas escuras das taipas que serviram e servem de cerca para o gado, uma lembrança do século XVII quando essa região era cruzada por tropas que seguiam do pampa para Sorocaba.
Em Bom Jesus, saímos da BR285 para a RS110. Jaquirana já está na Serra Geral e possui grandes elevações costeadas por profundo vales cobertos de um verde intenso, e pinceladas de rios de água cristalina a correr no fundo dos vales. De Jaquirana é possível cortar para Cambará do Sul por estradas de terra, mas devido ao alarme da gorila escolhemos seguir pelo asfalto até Tainhas, onde depois de um pequeno trecho na BR453 pegamos a RS020 que nos entrega em Cambará do Sul. Até Tainhas, depois de Jaquirana, paisagem é só de campos aparados.
Já em Cambará, cruzamos a pacata cidadezinha e seguimos no sentido leste. Já nos primeiros metros o asfalto ficou para trás. Começava uma dura batalha para sobreviver na estrada muito mal conservada que leva para o Parque Aparados da Serra. São 18 km de sacolejo, um teste para os órgãos internos se manterem no lugar.
Deixamos a gorila no estacionamento do parque, dois quilômetros depois da portaria, foi ali também o local onde fizemos nosso almoço antes de calçar os tênis e começar a trilha.
Primeiro seguimos a trilha do cotovelo, que possui no total 6 km. Na verdade a trilha é uma estrada rural cascalhada, curiosamente muito mais conservada que a estrada municipal. Os três quilômetros são percorridos em meio a vegetação pujante, com grandes araucárias dando guarida a mata intermediária.
Chegando no primeiro mirante, só pudemos ver as bordas superiores, pois a viração já tomara conta. Mais alguns minutos esperando e a garganta do Itaimbezinho deu a graça.
Ficamos empolgados e seguimos para o segundo deck de observação. As nuvens bailavam aprisionadas pelas paredes de 700 m de cada lado. A dança deixava, hora um ponto, hora outro à vista.
Começaram a aparecer grupos guiados, e nós tratamos de ir para o próximo mirante. Dessa vez paramos com o cânion todo tapado pela viração. Dois minutos depois a viração foi sumindo. Ficamos estarrecidos com o cenário que vimos; as grandes paredes afunilam como se fossem se estrangular, apenas alguns raios do sol penetram as laterais e o Rio do Boi lá no fundo ruge violento. Um dos cenários mais incríveis que podíamos encontrar.
Ainda fomos em dois outros mirantes mais a frente, mas nenhum chegou nem perto da cena que acabamos de ver. Ficamos algum tempo observando a dança frenética da natureza e o cantar ardiloso das aves.
De volta na sede, descemos a trilha de trás do centro de visitantes, que estava em reformas e fomos para os mirantes das cachoeiras. A primeira parada fica a poucos metros do centro de visitantes e tem uma vista alongada das arestas da garganta do Itaimbezinho. Depois passamos pelo vértice, que é o ponto onde o cânion começa e fomos do outro lado observar as demais cachoeiras.
Nesse último trecho o tempo não colaborou, a viração preencheu o monumento por todo o tempo. Não fosse uma pequena janela de 3 minutos que permitiu ver e tirar uma foto da Cachoeira das Andorinhas e parte do cânion, teríamos perdido essa caminhada.
Já eram 17:00 e nosso plano de ir a uma casa de campo onde se vendem pastéis e se conta história antiga do lugar, foi frustrado quando descobrimos que o local fechava às cinco.
Tomamos a trilha de volta. No mirante do vértice estavam um grupo de monitores ansiosos, por nossa passagem. Como éramos os últimos do dia, nossa saída significava mais um dia de dever cumprido com sucesso e o passaporte para o descanso.
Na estrada esburacada o cansaço apareceu, não sei se por tanto tempo dirigindo desde casa ou devido a caminha mesmo. Só pensava em para em um camping e dormir. Foi o que fizemos, cerca de 10 km da portaria, quase metade do trecho cidade/parque. Achamos uma cabanha, Cabanas do Casarão, que recebe campistas e montamos nossa Ofurô debaixo de um grupo de araucárias lindas.
Foi o primeiro dia que tentamos ver o pôr do sol, as colinas e algumas nuvens atrapalharam nosso plano, mas ainda assim pudemos avistar as cores quentes do final do dia.
Dia Terceiro - Cânion Fortaleza Parque Nacional da Serra Geral
Os primeiros raios do sol aqueceram a barraca às 05:30. Virei de um lado, de outro e consegui permanecer deitado até às 06:20. Depois de preparar o café, e dar um tempo para secar o orvalho, pegamos a estrada para o Parque Nacional da Serra Geral (PNSG). Os sete quilômetros até retornar para a cidade foram de sacolejo. No entanto os outros vinte que levam da cidade ao PNSG são asfaltados em 95% do trecho. Uma rodovia sem acostamento, toda charmosa com as sombras das araucárias dando espetáculo. O pequeno trecho sem pavimentação está em boas condições e recebe melhorias até a portaria do parque.
A dois quilômetros da portaria paramos no primeiro estacionamento e depois de colocar o equipo de trilha saímos para fazer todo o circuito interno de quatorze quilômetros.
A primeira trilha acompanha a parede leste do Cânion passando pela Cachoeira do Tigre Preto, indo até o mirante da Pedra do Segredo. Essa é uma rocha saliente, de cinco metros caprichosamente assentada sobre uma base de 50 cm na parede do cânion. Lá no fundo o rio corre penitente entre as rochas, seu ruído, como um gemido eterno escapa às paredes e vem nos atormentar.
Nas bordas do cânion há dezenas de espécies de flores silvestres rasteiras, amarelas, rosas, roxas, brancas e vermelhas, dando um charme todo especial ao cenário. Cenário aliás que não precisa de elogios, por si só é de uma beleza sem igual, a imponência e magnitude do corte na rocha fazem cair o queixo facilmente.
Quando iniciamos o retorno, começavam a chegar grupos guiados das agências, logo os mirantes ficaram disputados. Na travessia do rio, que forma a cachoeira, foi preciso aguardarmos sobre as rochas enquanto outras pessoas iam.
No retorno pegamos a trilha da borda sul. Estávamos quase parando para comer, mas eu insisti em caminharmos mais um pouco na tentativa de ficar de frente para a cachoeira. E finalmente ela estava lá. Sentados sobre rochas encravadas no alto pudemos saborear um lanche assistindo a água se precipitar por cerca de 200 m de altura se transformando numa grande nuvem branca que condensa ao bater no fundo do cânion. Esses 200 m é o que podemos ver desse ponto, pois o total da queda se aproxima dos 400 m de altura. Esta é a Cachoeira do tigre preto, a qual muito só veem de cima, alguns metros, sendo que a poucos minutos na outra trilha é possível ter essa vista magnífica.
Depois de alimentar-se, contornamos esse braço do cânion para chegar em outro mirante da cachoeira, esse de frente para a parte de cima, os outro 200 m. No caminho trombamos com um tatu que esgravatava a grama em busca de insetos. Quando percebeu nossa presença disparou numa corrida desvairada no campo acima.
Paramos mais uma vez para ver a Pedra do Segredo, dessa feita a uns 800 m da mesma, sob um ângulo bem diferente, de forma que o gigante de toneladas não aparenta ser maior que um tronco de araucária envelhecido. Na trilha da borda sul mais flores coloriam o caminho que leva até o Pico da Jararaca.
Se passavam das 12:00 e o tempo começou a mudar. A viração deu os primeiros sinais com suas nuvens dispersas e correntes de vento castigando a vegetação que se agarra como pode às paredes do gigante. Quando o vento encontra a parede, ele converge para cima empurrando o ar aquecido do litoral para cima e engolindo o ar frio dos campos formando condensação e aumentando cada vez mais as nuvens.
Aos poucos o visual ia mudando, uma paisagem dinâmica espetacular, mas que precede uma paisagem dramática e caótica mais à frente. Subimos o Pico da Jararaca sob um sol inclemente. Lá de cima temos uma das mais belas vistas do PNSG. O pico é um cume relativo bem na borda do cânion, portanto seu visual 360º permite enxergar todos os recôncavos do parque, que, aliás, possui quase sempre vegetação rasteira característica com suas colinas peladas e grandes rochas aparentes.
Pouco depois do Jararaca o Mirante do Cânion Fortaleza já havia sumido em meio a viração. Mais um quilômetro e o vento trouxe a umidade para nossa companhia sem piedade. Começou preenchendo a fenda e quando chegamos no segundo estacionamento tomou por completo os campos.
Como não somos de desistir apenas usamos o banheiro e começamos a subida dos dois últimos quilômetros até o Mirante principal. Na estradinha que leva até o cume a neblina começou a molhar a roupa, no entanto, temos por experiência que o clima nas bordas da serra é instável e muda constantemente, para animar, na segunda parte da subida as nuvens começaram a dispersar. Chegamos no mirante com a parte superior aberta, mas os campos abaixo e o interior dos cânions tapados. Sentamos e esperamos por 30 min, nada além de pequenas manchas de visibilidade.
Como já se iam 14:30 e a tendência depois desse horário é só piorar, começamos uma descida rápida. Antes ainda da metade da descida começou a chuviscar e no estacionamento já chovia fino. Do estacionamento dois até o um, onde estava o carro, fizemos correndo debaixo de chuva.
Saímos do PNSG às 15:40 com a água escorrendo nas canaletas da estrada. Antes ainda da cidade a chuva nem havia dado sinal.
Depois de uma breve parada no mercado para repor algumas frutas pegamos novamente a estrada do sacolejo, só que agora o sofrimento é bem maior, pois são cerca de 35 km até a cidade de Praia Grande lá embaixo.
A estrada desce a Serra do Faxinalzinho, nos meandros do Cânion Malacara e Índios Coroados, são 12 km de descida pelo cascalho, mas nesse dia a visibilidade foi zero (foto de abertura), logo não sabemos se é bonita a descida ou não. Sei que há momentos, em meio a nuvem, que parece que estamos indo em direção a um abismo infinito, quando repentinamente a terra marrom converge para um dos lados. É preciso então virar o volante no máximo e lentamente mudar de sentido até a próxima curva.
Em Praia Grande chovia quando chegamos no Ecohostel, um local muito agradável de hospitalidade. Colocamos a traia no quarto e fomos para a cozinha dos fundos matar a saudade dos nossos gatos fazendo carinho e agradando as duas gatinhas (a Alegria e a Pretinha) do anfitrião.
Próximo diário: Road Trip em Busca do Sol - Praia Grande, voo de balão.
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