2020 ano imprevisível. Ficamos a deriva desde fevereiro. Toda a temporada de montanha foi comprometida pelos seguidos lockdowns em decorrência da pandemia do Covid, as viagens minguaram. Nessas condições que topamos com a Ferrovia do Trigo.
Estávamos a caminho da primeira grande empreitada do ano, um circuito pelo Campo dos Padres, quando recebemos um convite para fazer o trekking Guaporé Muçum. É claro que já havíamos ouvido falar e lido algum relato, mas não estávamos muito iterados sobre. Para não perdera oportunidade, combinamos de se encontrar em Muçum em sete dias. O trekking é autoguiado, então não me preocupei com tracklog e levantar muitas informações.
Um motorista muito louco
Saímos de Urubici por Lages, Vacaria até Muçum. A viagem já foi um charme, depois de Vacaria, entrei em uma área de vinhedos e colonização italiana (Ipê, Antônio Prado, Nova Prata etc.) com muitas capelas, colinas e construções majestosas. Acredito que faça parte de alguma rota turística, mas como não conheço muito do RS, né. Resumindo, estou pensando em voltar para lá fazer um tour bem longo.
Em Antônio Prado peguei uma estrada vicinal, não demorou para as primeiras perdidas. Depois de 8 km a estrada começa a contornar um morro no sentido norte, certeza que estávamos errados. Retornei na vila de onde saíra, tomando a pior estrada que tinha e deu certo, tirando as voçorocas da estrada tudo correu bem, até passamos por uma represa sobre o Rio das Antas e muitas igrejas de arquitetura característica das colônias italianas.
Com o perdido e a situação da estrada chegamos em Muçum quase à noite, e fomos descansar no Hotel Marchetti. Não foi difícil pegar no sono, depois de um X-bacon na praça, e afinal já estávamos na estrada a sete dias. Fizemos um acordo com o proprietário que permitiu deixarmos o carro no hotel, sob sua supervisão. Saltamos às 06:00, e depois do desjejum bem volumoso seguimos para a rodoviária, na verdade, um casarão antigo bem parece um saloon faroeste reformado.
Às 07:10 a lotação deu marcha, eu já tinha passado um perrengue depois de perder a passagem que tinha acabado de comprar. Menos mal que o motorista, muito gentil, vendo que os outros quatro membros do grupo entregaram o bilhete, me permitiu aceder ao veículo. A viagem foi mais uma história. Durante o trajeto o motorista nos contou muitas de suas peripécias, quando dirigia carretas, vários golpes em danceterias e restaurantes (talvez ele estivesse achando que eu estava dando o balão na passagem). De repente, a 90 km/h ele vira para a esquerda, pelo para-brisas só vejo a copa das árvores, e num mergulho épico a viatura segue ribanceira abaixo pelo portal para Vespasiano Correa. A conversa acabou ali (o pouco fôlego restante usávamos para rezar que não houvesse outro drift daquele).
O grande desafio
Descemos na entrada de Guaporé, e a poucos metros já podíamos ver os trilhos. Meio desconfiados com alguns carros de fiscalização parados na estação, fomos adentrando na ferrovia como quem está perdido. Contudo, não demorou e todos seguiam o ritmo dos dormentes. Os primeiros 6 km são monótonos, os passos ainda teimam em ser descompassados. A cada bicuda no trilho ou dormente alguém era homenageado.
Quase duas horas depois a paisagem muda consideravelmente. Primeiro surge à direita um vale verdejante, com raros telhados avermelhados pincelando as colinas. Uma pitoresca tela caprichosamente pintada. Depois veio o primeiro viaduto, tímido ainda. Lá pelo terceiro/quarto viaduto já é possível ver o majestoso Rio Guaporé a bailar no vale. E finalmente o primeiro túnel. Dentro do buraco topamos com a equipe de manutenção, foi o teste que precisávamos para ter certeza que não nos proibiriam de passar. Andar nos trilhos não é tão "legal" assim. Batemos um papo, tudo ok, então seguimos.
Já contavam 14:00 quando chegamos no primeiro grande desafio; um viaduto vazado (somente dormentes e trilhos) com dezenas de metros acima das árvores, e para complicar mais de 250 m de extensão. Começamos a progredir lentamente, e apesar de alguns estarem muito apreensivos, ninguém desistiu. 20 min de tensão e chegamos do lado de lá. Havia um espaço que claramente era usado para acampar. Devido estarmos adiantados e a pouca segurança que o local apresentava seguimos adiante. Não sem antes conversar com um motociclista que apareceu ali e nos confirmou ser aquele o Viaduto Mula Preta.
Depois do curto túnel seguinte, aproveitamos para abastecer os cantis em uma caixa de água colocada na invernada do lado da ferrovia, provavelmente seja o abastecimento de água para animais - qual o problema, somos animais também. O próximo túnel que encontramos foi desafiador. Com 2000 metros de extensão, são necessários 40 min para atravessá-lo, boa parte deles no breu, quebrado apenas pelos fachos das lanternas. Saímos do outro lado já com a luz natural em decadência, e aproveitamos uma estrada de caça ao lado da ferrovia, com sinal de acampamento, a poucos metros de um córrego de água limpa, para montarmos nossa casa provisória. Depois de um arroz cozido com calabresa, bacon e bons papos ao redor do fogo nos colocamos em repouso.
Eram 02:45 quando acordo com o ruído da ferrovia e o apito da locomotiva chegando. Fachos de luz intensa cortam a escuridão cegando meus olhos. Por um instante tive a sensação de que a máquina vinha na nossa direção. Mais um silvo e a locomotiva já tinha passado, abri os olhos e vi apenas as faíscas dos vagões escorrendo pelo trilho. Minutos depois já estava dormindo novamente.
Interceptados no Viaduto
Levantamos ainda com o escuro. No entanto, um grupo grande sempre demora mais para levantar acampamento, e começamos a caminhar já eram 07:00. A monotonia, só foi quebrada 2 km depois. Avistamos uma placa oferecendo pastéis e refrigerante. Há pouco tomamos o café matinal, então passamos vazados. Só parei para ler a placa que indicava proibição de circulação na via, e outra na qual estava grafado "Viaduto Pesseguinho", foi quando vi um senhor lá embaixo varrendo as folhas do gramado.
Entramos no viaduto já parando para capturar alguma fotos, e também fazer um sobrevoo com o drone. Instantes depois olho para trás e vejo que um 'militar' vem chegando, todo fardado com coturno e tudo. O homem fez uma abordagem bem categórica:
- Os senhores sabem que é proibido andar nos trilhos?
- Sim senhor, está escrito em letras garrafais na placa ali da entrada do viaduto. -
- Então o que fazem aí em cima? - Retrucou o homem.
- Estamos a fazer a travessia. - Mudei o tom, para não criar problemas.
Logo de início eu tinha percebido que o 'milico' era o homem que varria o gramado, pouco antes, de chapéu e chinelo. Ele era o proprietário do camping ali embaixo. Frustrado com o movimento veio desabafar. Tentou aplicar um sermão: falando que a polícia estava prendendo; que haviam câmeras na entrada e saída; no camping dele também, e que iria passá-las à polícia; estaríamos encrencados. Ouvi-o pacientemente até que acalmou. No final acabou esclarecendo algumas dúvidas, e contou alguns acontecimentos recentes. Só nos deixou em paz, e já o vi abordando um casal que ia cruzando os trilhos - provavelmente indo em uma das cachoeiras ali na região - no mesmo tom que usara conosco. No final do dia soubemos que esse proprietário costuma causar problemas por ali, inclusive já foi preso por abordar trekkers estando armado.
Depois dessa lorota toda seguimos pelo viaduto. A partir desse ponto a cada aparição o Rio Guaporé é mais deslumbrante, suas águas tem um tom turquesa riscando a exuberante mata dos costões. Alguns viadutos à frente, um deles com mais 1000 m, saímos na Cascata da Garganta, um riacho que mergulha num buraco na terra passando por baixo da ferrovia. Havia muita gente nesse local, pois existem mais de uma forma de chegar até ali, é um ponto famoso na região. Saindo da cascata aproveitamos uma clareira para almoçar. Depois de alimentados me afastei do trilho para buscar água quando fui surpreendido por pegadas de um felino no barro fofo. Saí rapidinho dali e preferi nem contar para o grupo.
Do outro lado do trilho, o Marcos (um dos parceiros de trilha) me acompanhou, seguimos por uma trilha, provavelmente de motos, tentando chegar em uma cachoeira que tinha marcada no mapa. Descemos uma depressão de 500 m, por uma extensão de 2000 m e nada da cachoeira, acabamos saindo nas margens do Guaporé. A trilha para a cachoeira seguia por um leito de cascalho que, no entanto, aparentava esta seca. Abortamos a ideia. O visual daquelas águas cristalinas correndo entre as pedras, num tom esverdeado foi mais que recompensa pelo empenho de subir toda a trilha novamente.
De volta nos trilhos, resgatamos as mochilas e seguimos nossos parceiros que, cansados de esperar já tinham retomado a marcha. Assim que cruzamos outro túnel, antes de entrar no segundo, ouvimos um ruído de queda de água à esquerda dos trilhos. Desci a cargueira e poucos metros para dentro da margem se deparei com uma bela cachoeira toda ornamentada de musgos. Abasteci o cantil com a água e apressei o passo para alcançar o pessoal.
Mais viaduto e túneis. E para piorar a Bruna começou a mancar, efeito do descompasso dos dormentes, agravado pelos pés ainda não recuperados da travessia anterior a só três dias. Não demorou para entrarmos em mais um túnel extenso. Neste, encontramos muitas pessoas quando chegamos nos portais; grandes aberturas na parede do túnel que dão para o vale. Haviam desde adultos bêbados, crianças de colo até madames com pets. Difícil não pensar no risco, tanto de lesão nos dormentes (são quase 500 m dentro da escuridão até a entrada), quanto se o limpa-trilhos passa numa hora dessas; com tanta gente seria impossível ter espaço para todos se protegerem.
Afirmando a lei de Murphy foi só sairmos no Viaduto V13 - fica na entrada desse túnel - para ver que a coisa era pior. Haviam centenas de pessoas no viaduto, nas mesmas condições do túnel. Era tanta gente que preferimos nem entrar ali neste dia e tocamos direto pela estrada à direita em busca de algum camping que ficava 143 m abaixo. Assim que saímos na estrada a Bruna ganhou uma carona que aliviou o estresse da descida nos seus pés, afinal faltava mais um dia para o descanso real. Andamos aproximadamente 1 km até o Camping Paraíso V13 onde fomos recebidos por um casal simpático, que nos orientou acampar em um galpão construído para isso. A previsão indicava chuva durante a noite. O casal ainda ofereceu cobertas se precisasse, as meninas foram logo pedindo travesseiros que a moça atendeu com prazer.
Tomamos um merecido banho e deitamos por uma hora até que a janta ficou pronta. Eu fui o único que não jantei, não sou adepto de arroz e optei por dois pastéis incríveis e um café. O sono só foi interrompido de madrugada, às 02:40 a locomotiva rasgou a escuridão, seu apito fez tremer o vale, e pouco depois só mesmo as águas do rio sussurravam.
Um encontro nada agradável
Às 04:30 fomos despertados. Dentro do galpão um grupo de motociclistas desmontava suas barracas e colchões infláveis que, apesar de tentarem fazer pouco ruído não tinham sucesso. Lá fora a chuva tinha começado, e caindo em diagonal já tinha molhado minha bota e parte do sobre teto da barraca. Meia hora depois voltei aos braços de Morfeu, só saindo às 07:00 quando os demais acordaram.
Tomamos nosso café e rapidamente levantamos acampamento. Deixamos as cargueiras no abrigo enquanto visitávamos a cachoeira existente nos fundos do camping. Apesar de próxima da edificação, a umidade da chuva tornou o percurso um desafio. As pedras estavam lisas e o volume do rio tinha aumentado. Foram 40 minutos entre uma rocha e outra, segurando nas raízes das árvores, até que estávamos de volta prontos para terminar a empreitada.
Seguimos pela estradinha, a mesma que descemos no dia anterior, que, apesar de conservada é desafiadora. Uma subida íngreme para ganhar os 143 m do viaduto mais alto das américas, o V13 ou Viaduto do Exército. Não bastasse a subida, a chuva passou a castigar, era como se tivessem aberto as torneiras do firmamento.
Nas alturas as nuvens, pequenas, embrumavam o viaduto tornando-o sombrio; as mesmas nuvens davam um charme especial para o vale. Assim que passamos o segundo viaduto daquele dia, uma curva que mostrava de relance o V13, o profundo vale da esquerda é trocado por encostas gigantes à direita que, com tanta chuva salpicavam quedas de água branca por todos os lados - experiência visual deslumbrante possibilitada pelas condições.
A cada túnel, viaduto transposto a cena se repetia, fácil imaginar que se tornaria mais uma vez monótono. Uma plantação de cana forneceu energia para algumas brincadeiras entre os amigos, mas nada se compara as duas experiências seguintes.
Entramos no túnel que seria o último longo da travessia e depois de 15 min o breu tomou conta, a curva dentro do buraco tornava a luz das lanternas a única fonte de energia. Cansados, o grupo já se dispersava em dois blocos. Eu, Marcos e Bruna os retardatários. Ouço ruídos vindo ao nosso encontro. Assustados entramos na canaleta, relativamente larga naquele trecho e acocoramos. Duas luzes rompem escuridão e o ruído faziam o coração disparar, minha cabeça pensava: é só ficar paradinho que vai dar boa. De repente as luzes saem do curso do trilho e seguem direto para a canaleta onde estávamos agachados. Milhões de pensamentos tomam-me de assalto: não quero morrer agora, porquê acontece isso, porquê esse negócio vai descarrilar logo aqui em centenas de quilômetros. As luzes crescem, fecho os olhos esperando o fim, antão para minha surpresa e alívio uma buzina, e as luzes voltam aos trilhos. Suando frio, respiro novamente. Eram duas motos de trilha com seu barulho ensurdecedor, e, que, intencionalmente ou não nos pregaram a maior peça.
Recuperados do susto decidimos para na saída do túnel seguinte para almoçar já que era impróprio comer debaixo da chuva. Descemos as cargueiras e sentamos no trilho. Quase terminando o almoço escutamos o silvo do trem, e segundos depois ele aponta na curva. Foi um deus nos acuda, juntei o que pude e corri para o primeiro recuo a uns 40 m dali. Mais duas pessoas correram comigo, mas uma delas tinha deixado algo para trás e repentinamente parou sem saber se corria ou voltava, preciosos segundos que só não foram motivo de maior risco porque o trem era o limpa-trilhos, e parou antes de entrar no túnel para fazer uma inspeção. A máquina seguiu seu curso e nós retomamos a marcha.
Daí para frente os costões diminuem, os viadutos se tornam curtos e baixos. O cansaço toma conta. O grupo se dispersa, cada um no seu ritmo ocupando uma longa extensão da malha ferroviária, espaçados em mais 50 m um do outro. Distância suficiente para que nem todos vissem um bando de macacos aranha que saltavam adoidados nas árvores logo abaixo do último viaduto sobre o vale.
Mais a frente, quando a chuva derramava novamente, passamos por um entalhe na rocha de paredes imponentes e chão alagado, o trilho parecia um rio. No meio do caminho uma passarela dava um charme especial à vista. Um quilômetro à frente encontramos a estação ferroviária de muçum, recém reformada. Demos uma pausa antes de seguir pelo último trecho até a pequena cidade.
Depois de atravessarmos 22 túneis e 16 viadutos em um percurso de 60 km, fechamos com chave de ouro a Travessia do Trigo comemorando com cervejas e Xcostela na praça da cidade.
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